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REVISTA BUNDAS
2000 - em português
A Mulher da Transição
Estamos saindo de um milênio graficamente machista: o 1 é fálico. vamos entrar num milênio 2, todo cheio de curvas e sinuosidades. Um milênio feminino. Este século vai ter mais mulheres no comando da vida. Por isso achei fantástica a idéia de abrir o milênio entrevistando a Joyce, uma pessoa que acompanho desde que ela apareceu na vida. E de todas as mulheres que acompanhei, ela é uma das mais marcantes. Além de ser uma das mais bonitas.
Ziraldo
Ricky Goodwin - O que você está achando da revista BUNDAS?
Joyce - Achei muito interessante vocês colocarem esse nome: BUNDAS. Até escrevi uma crônica sobre isso, que é isso mesmo, que vocês estão antenados com o Brasil profundo. O Brasil quer mesmo bundas. Mas aí certas pessoas botam assim no jornal: B...
Ziraldo - Você concorda que o próximo milênio será feminino?
Joyce - Claro! Isso significa que o mundo vai dar uma melhorada. A mulher é muito mais gentil e solidária do que tem sido até hoje o comportamento dos homens.
Ricky - Se o milênio passado foi masculino e o próximo será feminino, na verdade 2000 vai ser um ano homossexual, porque um já acabou e o outro só começa mesmo em 2001.
Joyce - Não, acho que o século tem que começar com o ano zero sim. Ninguém mais está se sentindo no século XX. De qualquer maneira, a mulher como sujeito da História é um conceito muito novo.
Ricky - Aliás, é o grande conceito do século XX.
Ziraldo - Como seria o mundo entregue às mulheres?
Joyce - Não se pode generalizar, há mulheres e mulheres. Na Inglaterra, por exemplo, madame Thatcher fez um estrago fenomenal. Eu jamais votaria numa pessoa pela sua genitália.
Ziraldo - Mas alguma diferença deve existir entre um homem e uma mulher no comando.
Joyce - Tem uma característica feminina que é a solidariedade. Espero que no momento em que as mulheres galgarem posições isso não se perca. A mulher é solidária, ao parir ela abre mão de coisas próprias pra se dedicar a outra pessoa, e isso muda ela. Gosto de pensar que um século feminino seria generoso e solidário. Tudo que esse final de século XX não foi. O que a gente tentou construir nos anos 60 e 70 virou démodé nos 80 e 90, com um individualismo horroroso - o humanismo deixou de ter valor.
Luís Pimentel - O discurso humanista virou piegas.
Ziraldo - A gente achava mesmo que estava caminhando prum outro mundo...
Joyce - Mas quero crer que fomos momentaneamente interrompidos. Vamos voltar a isso na medida em que o novo século for se tornando feminino e os homens forem perdendo sua dureza. Embora a gente, mulher, tenha muitas vezes que se enternecer sem perder a dureza também.
Ricky - Mas as mulheres, assim como a esquerda, não tendem a mudar de lado quando chegam ao poder?
Joyce - Olha, nunca parei pra analisar isso, mas acho que o poder é uma droga que vicia, acostuma mal as pessoas. Taí o nosso querido presidente que não me deixa mentir. Não sou muito versada nessas coisas astrológicas, mas a Sílvia Sangirardi, minha amiga e parceira, falava que quando passa o planeta do poder, não importa se você é homem, mulher, criança... O poder é fogo, assim como o dinheiro, o sucesso. O artista vive essa dicotomia assustadora da arte e do sucesso. Hemingway dizia: "Quem gosta da minha literatura gosta pelas razões erradas".
Ziraldo - Me fale dessa música, Feminina.
Joyce - Foi escrita em 77 e gravada em 80. É interessante que a conversa tenha começado por ela que é meio minha canção de assinatura. Meus shows geralmente fecham com ela. É uma marca registrada consistente, me expressa em tudo, musicalmente, em termos de pensamento. E no entanto ela foi escrita como todas as minhas letras: sugerida pelo som da melodia.
Ziraldo - Mas de onde você tirou essas idéias de terminar e recomeçar, dobrar esquinas no mesmo lugar?
Joyce - Mandala. A questão feminina é bem essa: a geração da geração da geração...
Ziraldo - Como é que você descobriu que era poeta?
Joyce - Eu escrevia poesia antes de aprender a escrever. Ditava pra minha mãe. Pensava que ia ser escritora.
Ziraldo - Que coincidência! Enquanto eu estava aqui esperando a entrevista começar, peguei um livro sobre Ana Cristina César na sua estante e abri numa página que estava contando exatamente isso: ela, pequenininha, pulando no sofá e a mãe escrevendo o poema que ela dizia! Essas coisas me dão arrepio: por que abri logo ali?
Joyce - Me lembro vagamente de umas coisas que escrevi com seis anos de idade sobre o céu de Paris, vê se pode, só fui a Paris com 15 anos, mas certamente tinha uma visão daquele céu de outra encarnação.
Pimentel - Você tem um lado místico muito forte, né?
Joyce - Sou espírita kardecista.
Ziraldo - Você crê em reencarnação?
Joyce - Creio sim.
Ziraldo - Você crê num Deus que criou o mundo?
Joyce - Ah, Ziraldo, a BUNDAS não é propriamente o lugar pra gente discutir cosmologia nesse nível, mas é o seguinte: quando cheguei em Paris, com 15 anos, e saí andando pelas ruas sabendo exatamente onde ir, sem me perder...
Ziraldo - Aconteceu exatamente a mesma coisa comigo em Sevilha!
Joyce - Isso se chama déjà-vu. Mas você viu em que vida?
Ricky - Como é que a música entrou na sua vida?
Joyce - Nossa casa era muito musical. Minha mãe adorava Lúcio Alves, Dick Farney, Bing Crosby, Frank Sinatra, meu irmão era músico e ouvia muito jazz. Eu adorava aquela cafajestada do Sinatra! Quando era bebê, minha mãe cantava uma música do Geraldo Pereira pra eu dormir: "Ô que samba bom / ô que coisa louca / eu também tô aí / tô aí, o que é que há / também tô nessa boca." (*)
Pimentel - Só que aí, em vez de dormir, você devia querer ir pro samba.
Joyce - Na escola, eu botava música nos pontos que eu tinha que estudar e aí gravava. Música era uma coisa que brotava. É aquela coisa genial que diz o Hermeto (Paschoal): um derramamento. Me formei em Jornalismo mas como uma opção caso a música não desse certo.
Ziraldo - Você não estudou música?
Joyce - Não, aprendi a tocar violão vendo o meu irmão que era colega do (Roberto) Menescal. A turma do Menescal ia lá pra casa, ficavam tocando, e quando saíam eu pegava o violão e tentava copiar os acordes. Um dia cheguei da aula de inglês e meu irmão estava mostrando pro Menescal uma gravação que eu tinha feito escondida. Fiquei com ódio, entrei batendo porta, achei que estavam me gozando, mas logo depois Menescal me chamou pra participar de um grupo vocal. Com 15 anos entrei em estúdio pra cantar no conjunto Sambacana, na gravação de um disco do Pacífico Mascarenhas. Logo a primeira faixa entrava com um solo meu: "Não sou culpada / de ter enfim me apaixonado...î" Tinha outra assim: "Mais ou menos foi assim / vou contar como é que foi / começou de brincadeira..." Com Eumir Deodato no acompanhamento.
Ricky - Milton Nascimento também cantou no Sambacana, né?
Joyce - Foi, mas quando Bituca entrou eu não estava mais. Sabe que ele foi padrinho do meu primeiro casamento e eu fui madrinha do primeiro casamento dele? A gente deu azar um pro outro.
Ziraldo - Me lembro direitinho de quando você começou porque era a única compositora mulher da música moderna daquela época.
Joyce - Tinha também a Sueli Costa. Isso chamou a atenção de muita gente, pro bem e pro mal. O que levei de cacetada da imprensa por ser mulher compondo, vocês não fazem idéia! Achavam um absurdo eu escrever na primeira pessoa do singular feminino. Eu apareci num festival em 67, cantando: "Já me disseram que meu homem não me ama..." Essa expressão "meu homem" - que eu já tinha visto tantas vezes em Billie Holiday e Edith Piaf - causou uma celeuma.
Ziraldo - Só puta falava "meu homem".
Joyce - Jamais uma menina de 19 anos, aluna da PUC e recém-saída do Colégio São Paulo, certo? Sérgio Porto, o homem das Certinhas do Lalau, me meteu o pau: "Isso é música de bordel!" Das pessoas da velha geração, só Fernando Lobo me defendeu. No festival, tomei uma vaia poderosíssima.
Ziraldo - Você levou um susto com essa polêmica toda?
Joyce - Já tinha sido uma surpresa estar nesse festival, ninguém me conhecia e fui classificada entre 2.500 candidatos. Naquele tempo era assim: a inscrição era apenas um número, não tinha apadrinhamento, as gravadoras não loteavam como passou a acontecer mais tarde. Mas eu sabia que merecia estar lá: (canta) "Já me disseram que meu homem não me ama / me contaram que tem fama de fazer mulher chorar / E me informaram que ele é da boemia / chega em casa todo dia bem depois do sol raiar / Só eu sei / que ele gosta de carinho / que não quer ficar sozinho / que tem medo de se dar / Só eu sei / que no fundo ele é criança / e é em mim que ele descansa / quando pára pra pensar // Já me disseram que ele é louco e vagabundo / que pertence a todo mundo / que não vai mudar pra mim / E me informaram que quem nasce desse jeito / com razão dentro do peito / que é boêmio até o fim // Só eu sei / que ele é isso e mais um pouco / pode ser que seja louco / mas é louco só no amor / Só eu sei / quando o amor vira cansaço / ele vem pro meu abraço / e eu vou pra onde ele for."
Pimentel - Ismael Silva deve ter adorado.
Ziraldo - Como é que uma garota de 19 anos, Zona Sul, liberada, faz uma música de mulher de malandro?
Joyce - Porque eu tinha paixão por Noel Rosa. Não vivi os anos 30 mas eles foram muito fortes pra mim. Ô! Olha o apagão aí! (Acaba a luz e ficamos na mais completa escuridão.) É o bug do milênio. Se vocês sentirem alguma coisa estranha nas pernas é a cachorra, Vitória.
Ziraldo - É impressionante como suas músicas são well-adjusted: os versos encaixam direitinho na música.
Joyce - Vou usar outra palavra legal em inglês: craft. Isso é um ofício, um artesanato mesmo, enfiando a sílaba que soa de acordo com a nota, fazendo cair a sílaba tônica no lugar que suinga... é um mistério, uma forma de arte especial do século XX, é um meio que está fadado à extinção.
Ziraldo - Isso é uma coisa própria do nosso século mesmo. Você vê, a ópera não tem isso. Outra forma de arte que está em extinção é o musical no cinema. E não tem mais cartum na imprensa mundial. Agora a Joyce descobriu que não vai ter mais canção.
Joyce - Muita coisa está acabando. Minha última crônica do século, publicada no Dia, fala exatamente das artes do século XX que vão morrer com o século. Cinema é uma delas. Todos os filmes já foram feitos. Vão ter que inventar um outro meio. As canções também, já foram todas feitas. Agora vão ter que ser reinventadas em outros meios.
Ziraldo - Ninguém mais diz, quando dança, "estão tocando a nossa canção".
Joyce - Existe a "nossa canção" deles, que não é a minha nem a sua, e não é sequer uma canção.
Pimentel - Eu discordo. Ainda existem grandes nomes do nosso cancioneiro produzindo canções. Veja as retrospectivas de 99: Guinga, Chico Buarque, Nei Lopes...
Joyce - Você está me falando de pessoas com mais de 40 anos. Eles também estão em extinção.
Ziraldo - E a canção teve um renascimento porque 1999 foi um ano de revival, de relembrar este século.
Joyce - Há dois anos fiz um show em Lavras (MG) que foi um dos mais comoventes: era a despedida do cinema da cidade, com dois mil lugares, que ia virar um Varejão das Fábricas.
Ziraldo - Em Caratinga, no meu tempo, a cidade inteira parava das sete e meia às nove e meia da noite porque era o horário da sessão de cinema. Agora não tem mais um cinema em Caratinga.
Joyce - Vai ser inventada uma nova forma para a música. Não sei qual é, sou de uma geração que fazia canções, mas não devemos subestimar as gerações futuras. Não tenho dúvidas de que serão formas revolucionárias.
Ziraldo - A palavra "virtual" não estava na nossa concepção de mundo.
Joyce - O século XX deu um pulo tecnológico violento. Imagine meu sogro, que nasceu em 1901 e viu o cinematógrafo virar o videocassete. Já pensou?
Ziraldo - E Barbosa Lima Sobrinho, que atravessou três séculos sem perder a esperança? Por que você ficou Joyce, sem sobrenome?
Joyce - Meu nome era inusitado, na época ninguém se chamava Joyce, e no meu primeiro contrato a Philips achou que não precisava colocar mais nada.
Ricky - Naquele tempo, Joyce era o James.
Joyce - Meu nome é Joyce Silveira Paranhos de Jesus. Sou filha de um relacionamento moderníssimo, uma produção independente - em 1948 - e fiquei com o sobrenome do primeiro marido da minha mãe.
Ziraldo - Que bonitinho! Você é filha só da sua mãe. Vem daí esse negócio de você ser uma mulher assumida.
Joyce - Fui criada sem pai. Só conheci ele bem mais tarde, com 15 anos. Ele era dinamarquês, deixou sete filhos aqui pelo caminho.
(Mariana, a filha mais nova de Joyce, entra carregada de velas que são distribuídas pela mesa, voltando a iluminar a entrevista)
Ziraldo - Daí esses seus olhos?
Joyce - Não, a família da minha mãe descende de Pedro Ivo Veloso da Silveira - aquele da Revolução Praieira - e pernambucano sempre tem uma Holanda no meio. Meu avô, também Pedro Ivo, era comandante de um daqueles navios da Marinha Mercante que foram torpedeados pelos alemães em 42.
Ziraldo - Você tem olhos de Capitu, de quem tem a sensualidade à flor da pele.
Joyce - Isso é astigmatismo: três graus e meio de cada lado. É tudo Monet.
Ricky - Em 67 você fez essa música de mulher de malandro. Dez anos depois, escrevia "Feminina". Como foi essa passagem?
Joyce - Quando lancei meu primeiro disco, em 68, um jornalista escreveu assim: "Um grande disco. Difícil acreditar que tenha sido composto por uma mulher." Outros diziam: "Você toca violão feito homem." Mas nesses dez anos veio uma enxurrada de compositoras falando no feminino, algumas, como Fátima Guedes, lindos frutos da semente que plantei da linguagem própria. Assim como a Fátima é minha irmã mais nova, o Chico (Buarque) e o Edu (Lobo) são meus irmãos mais velhos. A música brasileira é uma família. A geração da gente é filha da bossa-nova - particularmente do Tom - neta do samba dos anos 30, e irmã do Francis (Hime) e do Dori (Caymmi).
Ziraldo - São filhos do Tom ou do João Gilberto?
Joyce - Da batida do violão de João Gilberto tocando uma música do Tom com letra do Vinicius.
Ricky - E nessa genealogia, você já enxerga filhos de Joyce?
Joyce - É, eu não diria filhos, mas tem compositores deserving wider recognition: Guinga, Sérgio Santos, Mario Adnet, Lenine... Tem cantoras maravilhosas como Simone Guimarães, Mônica Salmaso... São Paulo está cheio de gente interessante.
Ziraldo - É assustador como ferve a noite em São Paulo. Enquanto aqui tem o Mistura Fina, São Paulo tem 80 lugares pra fazer show. Tem mais de 200 lugares pra ouvir música.
Joyce - Você está dizendo isso pra uma cidadã carioca que está muito mordida com uma série de questões. Pra começar, pela especulação imobiliária. Quem viveu o Rio e vê a cidade hoje fica deprimido. A paisagem foi arrancada da gente. Eu vou fugindo, subindo cada vez mais, agora estou no alto do Humaitá.
Ziraldo - O Rio tem essa coisa mágica: você mora no terceiro andar mas está no topo do mundo. Olha essa vista aqui!
Joyce - O Rio ainda tem esses segredos: aqui tem macaco, esquilo, beija-flor, morcego... Mas acho uma tristeza como o Rio foi transformado, posto abaixo para ser reconstruído feio. Não tem nada mais feio do que a arquitetura recente do Rio de Janeiro. Só se derruba e se reconstrói errado, escondendo a paisagem.
Ricky - E a violência do Rio, é isso tudo que dizem?
Joyce - Isso tudo e mais outra coisa. A gente abre o jornal todo dia e toma um susto.
Ricky - Abrir o jornal não é nada, pior é abrir a janela e tomar susto com os tiroteios.
Joyce - Isso é muito grave. Olha lá a Dona Marta daqui. (Enquanto todos olham pela janela, volta a energia elétrica e a entrevista fica de novo, literalmente, às claras.)
Ziraldo - Essa coisa de você nunca ter feito concessões é do cacete, mas como você lidou no dia-a-dia com o fato de nunca ter estourado?
Joyce - É, custa caro pra cacete. Mas eu gosto, foi uma escolha minha, completamente consciente.
Ziraldo - Você poderia ter sido uma Nara Leão.
Joyce - Na época em que surgi, as coisas que fizeram a Nara Leão ter esse sucesso estavam deixando de existir. Os primeiros festivais davam outra exposição. O nível de música que se ouvia no rádio era alto. Quando estourei, em 80, com um certo atraso, naquele famoso festival da Globo do "Clareana", a música que fazia sucesso não era mais o que eu estava a fim de fazer. "Clareana" vendeu pra cacete, virei ídolo de criancinha, e o executivo da gravadora chegou pra mim: "Precisamos de uma nova Clareana para o ano que vem". "Olha, posso te oferecer uma outra coisa". Eu não podia me trair como artista. Ofereci a música que eu fazia, no disco seguinte, e no outro, e no outro... Os artistas da minha geração que se deram bem tomaram um caminho mais pop, mas eu sou de uma praia de acordes, de harmonia, onde encontro Edu Lobo. Optei por isso. Mas o mundo dá muitas voltas. No início da década de 90, a juventude londrina leva essa mesma música que eu venho fazendo, bota no dance floor e faz o maior sucesso. As gravações originais não são nem remixadas, isso que é do caralho! Virou uma febre.
Ziraldo - Você consegue viver de música?
Joyce - O que você acha? E meu marido também é músico! No início da carreira passei dificuldades, mas agora, pro tipo de música que eu faço, tá bom demais. Faço anualmente turnê na Europa e no Japão.
Ricky - É estranho como você faz sucesso no Japão, né?
Joyce - Olha, não gosto nem de contar, fica parecendo cabotinismo... mas é impressionante.
Pimentel - Wilson Moreira é um dos maiores compositores que o Brasil já teve, mas não consegue gravar há 15 anos. Ninguém do público aqui sabe quem é Wilson Moreira. O Japão lança um disco dele a cada dois anos.
Joyce - Guilherme de Brito, pra lançar disco, teve que ser no Japão! Há 15 anos que tenho uma relação profissional muito sólida com o Japão. Em 85, meu trabalho já estava sendo comentado na Europa, e fui convidada para participar do Festival Yamaha. Cantei no Budokan, que é um puta estádio. Me convidaram outras vezes e fui aumentando o público, que, além do pessoal que gostava de MPB, passou a incluir o pessoal que gostava de jazz, e agora também o público adolescente, do acid-jazz, que dança música brasileira.
Ricky - Como é que você explica esse fascínio maluco que japonês tem por música brasileira? São culturas muito diferentes.
Joyce - Embora eles sejam uma sociedade fechada - principalmente para um estrangeiro - têm uma grande curiosidade pelas coisas e respeitam profundamente tudo aquilo que consideram clássico. Essa música brasileira - bossa-nova, choro, samba - pra eles é clássico. Você passa a ser um clássico e eles te respeitam dobrado. É como a gente ouve a Billie Holiday. Classic. Como a garrafa de Coca-Cola. Aliás, esse respeito pela música brasileira existe em vários lugares. Nos Estados Unidos fiz todos os festivais de jazz, gravo pela Verve, um selo famoso. Cantei duas vezes no Théâtre de la Ville em Paris. Enfim, só não fico feliz com o Brasil, onde moro, onde gostaria de atuar mais, mas onde o tipo de música que faço comove menos.
Ziraldo - Não, essa música comoveria, mas é que a massa é esmagada, não tem conhecimento.
Joyce - Sim, é esmagada por uma mídia corrupta e cruel. Mas acontecem também coisas lindas, como ir cantar na Lona de Realengo e as pessoas cantarem juntas comigo as minhas músicas. Em todo show que eu faço, em qualquer cidade brasileira, vêm pessoas me dizer que se chamam Joyce por causa do meu nome. Isso é genial, é um carinho lindo do público.
Pimentel - Fale de seu programa na TV, Cantos do Rio.
Joyce - Que está nos seus estertores, em fevereiro passa o último. Era uma proposta de mostrar a música carioca, com pessoas que vivem e produzem no Rio - mesmo não sendo cariocas, como Hermeto (Paschoal) e João Donato - e que cidade maravilhosa é esta, né? Mostramos as pessoas nos seus lugares, Billy Blanco em Copacabana, Edu Lobo em São Conrado, Paulinho Pinheiro no Recreio, o jongo da Serrinha, o choro em Botafogo na casa dos César Faria, o samba na Mangueira, fomos procurando... Era um projeto da MultiRio, a empresa multimídia da Prefeitura. Conseguimos fazer 12 programas, foi muito gostoso, a imprensa abraçou o programa, e tínhamos esperanças de prosseguir, até o momento em que a verba da Prefeitura parou por aí. Mas vai fechar lindaente: o último programa é uma roda de samba com Walter Alfaiate e José Renato.
Ricky - De 79 pra 80 veio seu grande sucesso de público no Brasil, com "Clareana", "Feminina". De 89 pra 90 veio o sucesso internacional, nas pistas londrinas, turnês no Japão, etc. De 99 pra 2000, o que vem por aí?
Joyce - O que será que vai acontecer? 99 foi um ano multimídia pra mim: não só fiz tudo que eu faço - gravar discos, compor, turnês - como também esse programa de TV e a crônica semanal no Dia. São novos caminhos que eu estou adorando. O que recebo de e-mail sobre minhas crônicas! Acho que a virada da década dessa vez vai ser multimídia. Sim, me vejo escrevendo mais.
Ziraldo - Joyce, desculpe eu te dizer isso, mas você é uma intelectual.
Joyce - Espero que seja um elogio. Se for intelectual como Tom Jobim, tudo bem, ele era um belo homem de letras e de músicas.
Ziraldo - Você é uma mulher da transição, como foi Chiquinha Gonzaga. Estamos entregando este século pra você.
(*) "Que Samba Bom!", samba de Geraldo Pereira e Arnaldo Passos, sucesso do Carnaval de 1949, quando Joyce tinha apenas um ano de idade.
Ziraldo - Você é uma mulher da transição, como foi Chiquinha Gonzaga. Estamos entregando este século pra você.
(*) "Que Samba Bom!", samba de Geraldo Pereira e Arnaldo Passos, sucesso do Carnaval de 1949, quando Joyce tinha apenas um ano de idade.
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Carolina Gouveia